terça-feira, 21 de abril de 2009

LES COMMEDIENS TROPICALES ENCENAM 2º D. PEDRO 2º E COLOCAM OS HISTORIADORES NO LAGO DE NARCISO



“Não existem fatos, só interpretações.”
Friedrich Nietzsche.




Semana passada fui ao Teatro Sérgio Cardoso, na rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, para assistir à peça 2º D. Pedro 2º, representada pela companhia Les Commediens Tropicales e financiada pela Lei de Fomento ao Teatro do Município de São Paulo. A peça, que estará em cartaz até o dia 26 de abril (sexta feira às 21h30, sábado 21h00 e domingo 19h00), dá continuidade à proposta da companhia de discutir a história do Brasil. Esta história, todavia, teve início com a encenação de Galvez: Imperador do Acre, quando uma trupe da graduação em Artes Cênicas da Unicamp se amotinou. Desde então, alguns prêmios e o sucesso de Chalaça, a peça os encorajou à representação da história local no palco, por meio do que chamam de “provocação cênica”, onde a direção tradicional é preterida em função de um incitamento à criação performática dos atores, empreendida aqui por Fernando Villar.

Está-se a ver que a trajetória de Les Commediens Tropicales pode causar inveja a alguns dos acadêmicos mais aguerridos: seu “TCC” lhes abriu portas para um “grupo de pesquisa”, seu “orientador” tem um “currículo lattes” extensíssimo, seu “mestrado” foi premiado, uma “agência de fomento” resolveu financiar sua pesquisa. Por essas razões, eles se sentiram autorizados a defender a seguinte tese: “São eles [os historiadores] que fazem do passado um espetáculo presente, que lançam mão da imaginação para escrever a suposta ‘História’ com H maiúsculo”, explica Carlos Canhameiro.
Para um historiador que assiste à peça 2º D. Pedro 2º, a sensação imediata é a de contemplar a própria imagem no lago de Narciso. A história começa a surgir das gavetas dos vários arquivos que limitam a ação dos personagens. Ao serem abertas, essas gavetas difundem luz sobre o picadeiro, conferindo ao historiador que, pretensamente, decodifica esses registros de passado, um prazer sado-masoquista, oriundo da dor e da delícia de ser o que é.
Uma grande tela projeta, ainda demarcando o território da estória, o velho word indo e vindo com a idéia de que a história é uma farsa, o que pode soar ultrajante se não for levado em conta que um dos primeiros sentidos da palavra remete a uma “pequena peça cômica popular, de concepção simples e de ação trivial ou burlesca, em que predominam gracejos, situações ridículas”(HOUAISS, Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa, 2007).
Note-se, portanto, que a estória de Les Commediens Tropicales é uma história do cotidiano ordinário que procura desmistificar, debochando dos dramas pessoais e ironizando as casualidades, o perfil de alguns heróis tupiniquins e a labuta daqueles que registraram suas trajetórias. Até aí, nada de novo, só se comprova que a peça é fashion, do ponto de vista historiográfico e editorial. Michel Foucault, estando vivo, poderia perguntar, então, “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?”(FOUCAULT, A ordem do discurso, 1996, p. 8)
Entre os vários riscos assumidos pela companhia, o primeiro é afirmar que o “imperador está nu” e, como se sabe, “toda nudez será castigada”. A começar pelo bumbum de Carlos Canhameiro que, embora seja digno de apresentação, acaba banalizado pela superexposição. Em seguida, a pretensa nudez da informação quando, já no final da montagem, o texto deixa de se referir à visão de Pedro II e passa a dar um resumo, no melhor estilo “o que você deve lembrar para se dar bem na Fuvest”, sobre como foi a proclamação da república no Brasil. A opção pelo escândalo da nudez e da neutralidade deixa o público um tanto fatigado, sobretudo, aquele público acostumado ao silêncio das bibliotecas e ao ruído das traças.
Mas, se da companhia das traças o historiador decide se aproximar dos atores, tal como eles, generosamente, o fizeram, verá quão boas foram algumas das principais questões ali suscitadas. A começar pelo começo, quando a vagina que pariu um bebê de 58 cm é colocada em discussão. De modo implícito, estão ali colocados alguns dramas das tramas históricas: Quais os limites da fidelidade do historiador às fontes? De que maneira se confere legitimidade e credibilidade ao historiador, “seus informantes” e sua narrativa? Deve-se levar em conta que, em tempo de prazos exíguos, não são todos os iniciantes em pesquisa histórica que se dedicam a refletir sobre essas questões, daí uma das vantagens da peça.
Segue, então, a suposto tragédia íntima de Pedro II, sua educação é comparada a uma receita, sem “Biotônico”, para fazer o cérebro do menino crescer. A rotina do pequeno Pedro parece tortuosa, não há prazeres individuais, o que, num texto acadêmico poderia ser chamado de anacronismo, mas, para Les Commediens Tropicales e Sofia Coppola é plenamente aceito, sobretudo, porque confere graça e atualidade à farsa, ampliando o número de interlocutores dessa estória.
Uma vez no trono, impera o tédio de um garoto sem vida pessoal. A possibilidade de um casamento é tratada como sinal de mudança. Nesse momento, Pedro é um adolescente qualquer, exortando suas qualidades em frente ao espelho. Contudo, a falta de beleza da pretendente é vista como nova decepção. Neste ponto, vai uma provocação aos atores, ora, só as bonitas são gostosas?
Ressentimentos à parte, o aparecimento da condessa Barral é divertidíssimo! Isto porque se explora não apenas o sentimento universal da paixão, com o comportamento embasbacado dos humanos diante do objeto do desejo, quanto porque a dança do acasalamento entre Pedro II e Barral é embalada pelo refrão “faz de conta que eu sou o primeiro”, numa alusão impagável aos adultérios de Pedro, o primeiro.
A Guerra do Paraguai acaba com o clima romântico sustentado até então. As estatísticas desta querela e sua comparação com a Guerra do Golfo assustam aqueles leigos que costumavam dormir nas aulas de História, porque achavam a matéria chata e desconectada da vida hodierna.
Neste sentido, uma das principais contribuições da peça é apresentar ao público uma história “viva” que, embora exposta de maneira conceitual, é acessível e, portanto, democratiza essa área de conhecimento. Ainda assim, ela desperta no historiador, acostumado às soluções verbais mais recorrentes da historiografia contemporânea, o desejo de incrementar o modo como compõe sua narrativa, já que ele observa a empatia com a qual o público compartilha os problemas de Pedro II. Em outras palavras, dá inveja da liberdade deles!
Para finalizar, sem descrever a peça toda, resta contar o final, o que, para os historiadores, nunca é um motivo de desprazer, já que sabemos do final de todas nossas histórias, antes mesmo de começar a contá-las. A peça é encerrada com uma barricada de arquivos (seria o altar de Furet?), os atores convidam o público a contar sua história, aludem a um “causo” da vida de Pedro II, contado pela avó de algum deles que, questionado sobre a veracidade do fato, responde: “Não é mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos”. (FOUCAULT, Arqueologia do saber, 2005, p. 6) Hahaha! Não se costuma guardar o melhor para o final? Somos tão óbvios quanto todos.

Um comentário:

Obrigada por participar das discussões de Outros Historiadores! Se quiser publicar um texto completo, por favor, envie para professoramariarenata@yahoo.com.br.